Entrevista com Jean C. Moreno por Alice Giraldi
Em tese defendida em Assis, historiador analisa a
identidade brasileira refletida em livros didáticos adotados no ensino básico
desde os anos 1970.
Unesp Ciência. Recorte da pesquisa: o discurso
dos livros didáticos de História do Brasil, com foco no período da colonização
portuguesa, “do qual emergiam mais fortemente os discursos identitários em
capítulos preocupados com a formação
sociocultural e étnica da nação”. Por favor, explicar melhor o conceito
que aparece entre aspas: aqui, estamos falando particularmente da forma como
foi apresentando o povo brasileiro nos livros didáticos, como resultado da
mistura das três raças – branca europeia, indígena e negra?
Sim. Os livros didáticos de
História apropriam-se de um léxico sobre o Brasil e os brasileiros, buscando
combater ou reforçar interpretações que circulam na sociedade como um todo,
construindo, assim, respostas para a questão “quem somos nós?”. Trabalhamos no
livro com a noção de representações fundadoras, as quais seriam
representações que, por sua constante reiteração, acabam tendo um peso maior,
instalando-se com certa profundidade no imaginário social. Mesmo as construções
discursivas que intentam superar ou combater estas representações têm forçosamente
que negociar sentidos com elas. Ainda que permeadas por apropriações
conflitivas, são estas representações que dão sustentação às nossas formas do
social. Por uma série ]de fatores, dentre eles a própria
continuidade da dinastia portuguesa no processo de independência do país,
construíram-se e reforçaram-se representações nas quais o ano de 1500 marca o
início da história do país, o surgimento do ‘Brasil’. Por isso, nas intrigas
construídas pelo discurso histórico, é no período colonial onde se vê mais claramente
as narrativas de brasilidade, como se as relações construídas neste
período determinassem o ‘caráter’, a ‘essência’ do Brasil e dos brasileiros.
Você tem razão em apontar a relação entre os diversos sujeitos sociais
racializados – índios, brancos e negros – como o cerne dessas representações.
Subjacentes às relações sociais estabelecidas emergem representações da
sociedade brasileira que evocam, conforme o período estudado, harmonia,
pacificidade, mas também violência, desigualdade social e dominação.
Unesp Ciência. Recorte histórico, 40 anos de
produção didática de História: quais motivos nortearam a escolha das décadas de
1970, 1980 e 2010 como períodos de estudo?
A periodização é uma das
tarefas mais complexas com as quais se defrontam os historiadores. Em nosso
caso, desde o início nos propomos a colocar os discursos dos livros didáticos
em diálogo diacrônico, quer dizer: pensar as mudanças e permanências ao longo
do tempo. A organização a que chegamos coincide com certa periodização política,
mas ela se definiu a partir também do contato com as fontes históricas, no
nosso caso, os próprios livros didáticos e a legislação escolar. O primeiro
período, delimitado entre 1971 e 1979, (analisado em nosso segundo
capítulo: “Produção Didática de História e Representações Identitárias sob o
Estado Autoritário”) é marcado pela existência de uma ditadura, cujos
interesses poderiam apontar alguma continuidade na produção didática de
História e nos discursos identitários estruturados desde os finais do século
XIX e reelaborados no período do Estado Novo. Contudo, a década de 1970 é
significativa também porque há a ampliação do público escolar, com a expansão
dos sistemas públicos de ensino, a implantação do Ensino de Primeiro Grau e a
extinção do exame de admissão. É também um momento de intensa expansão e
‘industrialização’ da produção dos livros didáticos, com subsídios
governamentais e isenção de impostos a toda a cadeia produtiva. Por fim, este
período torna-se também importante devido à proposta oficial de implantação dos
Estudos Sociais, que trazia consigo uma reelaboração instrumental da história
escolar.
No segundo período (abordado no
terceiro capítulo: “O Campo em Aberto: a Produção Didática de História após a
Abertura Política”), delimitado entre 1985 e 1992, objetivávamos entender como
se comportavam os discursos didáticos sem a sombra da vigilância de um Estado
autoritário. A transição de regime político aguçava a relação entre a
educação e a realidade social, com a História, por vezes tomando o primeiro
plano nestes embates. O restabelecimento da democracia política, e as
discussões em torno das reformas curriculares em âmbito estadual aproximaram
a educação com demandas oriundas dos movimentos populares com os quais a
educação escolar como um todo e mais especificamente o ensino de História
dialogaram intensamente. Por outro lado, continuou, no período, a expansão do
mercado editorial, acompanhando o crescimento da matrícula escolar.
Já o terceiro recorte (que se
refere a nosso quarto e último capítulo: Identidades e Livros Didáticos de
História após 20 Anos de Democracia Política) analisa os livros aprovados
pelo PNLD 2011, programa governamental, fruto de um investimento intenso da
sociedade brasileira sobre os livros didáticos; investimento este que envolve,
além da distribuição dos materiais aos estudantes, especialmente, a avaliação
dos livros por equipes acadêmicas de área, ligadas às universidades públicas. O
desenvolvimento do programa em sua segunda fase (1995 em diante) levou a todo
um reajustamento do mercado editorial de livros didáticos. O período é marcado
pelo amadurecimento também de demandas importantes. Seguindo uma tendência
mundial, há uma discussão mais forte sobre a diversidade cultural e a
perspectiva de alteridade na escolarização. A pressão, contínua, dos grupos
sociais, especialmente dos movimentos negros e indígenas, para serem tratados,
no passado e no presente, como sujeitos de sua própria história, fez vir à tona
as Diretrizes Curriculares para a Educação Étnico-raciais. Fortaleceu-se uma
demanda por restringir, nos livros didáticos, as representações de diversos
sujeitos sociais ‘apenas’ como vítimas da violência física ou simbólica.
Concomitantemente, uma historiografia, bastante consistente, sobre o período de
colonização europeia se consolidou e corroborou nesta leitura ao salientar as
estratégias, astúcias, resistências cotidianas e trocas culturais entre os
diversos grupos que conviveram na América Portuguesa. Tudo isso apontou para a
possibilidade de uma renovação das obras didáticas de História e para uma
possível rearticulação dos discursos sobre a(s) identidade(s) dos brasileiros
presentes nas obras didáticas de História.
Unesp Ciência. O livro introduz o conceito de representações da
identidade brasileira como “produtos”, que têm uma origem social. Poderia
explicar as categorias propostas por Roger Chartier?
Bem, Chartier é um autor
bastante conhecido e debatido na área de História. Uma de suas principais
contribuições está em construir, desde meados dos anos 1980, uma proposta de
História Cultural de inspiração sociológica, dando possibilidades de se pensar
a História como ciência, avistando um caminho entre a falência dos modelos
macro-explicativos e a ascensão do discurso pós-moderno.
Na proposta de Chartier, o
acesso ao real se dá através de suas representações, os esquemas
intelectuais próprios de cada grupo. Na busca de perceber como as clivagens
sociais são construídas culturalmente, Chartier vai argumentar que cada grupo
descreve a sociedade tal como pensa que ela é ou como gostaria que fosse.
Assim, as representações tornam-se um conceito chave para a compreensão dos
enfrentamentos sociais.
Chartier rebate a idéia de que
o trabalho com as representações implicaria excesso de subjetividade e,
portanto, um distanciamento do real. Para isso faz uma retomada de Durkheim e
Mauss, ressaltando a origem social das representações. Embora possam conquistar
autonomia e parecer auto-suficientes, as categorias lógicas, as representações,
que estabelecem classificações e organizam a percepção do mundo, têm origem
social. Também por isso, as lutas de representações são tão importantes e
definidoras do social quanto as lutas mais diretamente econômicas.
Permeia toda a concepção de
Chartier, a idéia de que o leitor (e o raciocínio estende-se às demais
práticas de consumo cultural) não é como ‘cera mole’. Esta relação móvel
entre texto e leitor conduz a outra noção central da proposta do
historiador francês, a apropriação. A prática diferenciada de
interpretação é o que possibilita a dissensão. De uma operação a outra se
produz a ruptura, a alteração de sentido. As representações do mundo social,
colocadas num campo de concorrência são apropriadas pelos indivíduos e grupos,
conforme seus referenciais e interesses, construindo, então, novas
representações.
Foi assim que interpretamos a
produção dos livros didáticos, entendendo o seu conteúdo e a sua forma
como um produto de práticas de apropriação de diversos referenciais e
determinantes. Os autores são ao mesmo tempo receptores e construtores de
representações dos discursos que circulam na academia, na mídia, nos debates
políticos e educacionais, etc.
Unesp Ciência. O senhor diz que “a questão das
identidades tornou-se temática incontornável para quem quer compreender o mundo
contemporâneo”. Poderia explicar?
Percebe-se um processo em que
as disputas identitárias se tornam espécie de fio condutor das democracias
contemporâneas. Grupos diversos buscam, por um lado, a afirmação das diferenças
e, por outro, a validação destas diferenças dentre os iguais do
paradigma iluminista que sustenta o Estado-nação. Neste sentido, trata-se de
uma disputa de - e por - poder.
Cabe destacar que as
identidades são representações, figuras discursivas, cuja sustentação remete a
experiências históricas. Por isso, o passado é objeto de embates políticos e
disputas materiais e simbólicas.
Unesp Ciência. Quem está por trás das
representações da identidade brasileira presentes nos livros didáticos nos anos
1980 e 1990, ou seja, quem foram os autores dos livros nesses períodos? Também
houve uma influência, na identidade dos brasileiros que esses livros
introduzem, de outros atores, como editores, acadêmicos e gestores
governamentais da área de educação, por exemplo?
Em todos os períodos analisados
convivem diversas gerações de autores. No caso a que você se refere pode-se
destacar obras paradigmáticas do período de abertura política com um texto mais
“livre” que torna a narrativa mais “viva”, axiologização mais evidente dos
conhecimentos históricos, incentivo à mobilização e busca de um rompimento
explícito com a concepção da sociedade brasileira harmoniosa. Estas obras e
seus autores têm forte vinculação com os movimentos populares e com os
discursos sociais de oposição ao regime militar. No âmbito acadêmico, os textos
produzidos por uma comunidade vinculada à área do ensino de História também propugnavam
uma empatia com as camadas populares, considerando a experiência de vida dos
estudantes e dando voz a sujeitos que não tiveram espaço nas narrativas
construídas e reafirmadas desde o século XIX. Esta discussão também estava
presente como pano de fundo das reformas curriculares estaduais. Percebe-se,
então, que mesmo as editoras tradicionais do mercado didático foram muito ágeis
em compreender o novo contexto político brasileiro e atender às novas demandas
do ensino de História, não receando em propagar discursos ideologicamente
comprometidos com uma postura de ruptura política.
Unesp Ciência. Qual é a importância da
iconografia (imagens) nesses livros, no que diz respeito à representação da
nossa identidade? Por favor, citar exemplos.
As imagens escolhidas por
autores e equipe editorial são, de fato, bastante importantes na composição de
um discurso identitário. A utilização de imagens não é uma característica
exclusiva da disciplina de História, mas seu uso ganha caráter específico por
seu estatuto de documento; o referente, direto ou indireto, das imagens
históricas está, geralmente, no passado.
Em muitos casos, as imagens reproduzidas nos livros didáticos sobre o período
mencionado tratam-se de pinturas e gravuras ‘históricas’ – desenhos de
viajantes e os quadros “históricos” elaborados pela Academia Imperial de Belas
Artes no século XIX -, empregadas como testemunho do passado, espécie de
comprovante dos fatos. Pela sua constante repetição, estas imagens acabam se
tornando ponto de referência de identificação coletiva. Neste caso, destacam-se
as imagens que buscam construir ou reforçarrepresentações fundadoras da
história nacional como A Primeira Missa no Brasil ou A Batalha
dos Guararapes, ambas de Victor Meirelles.
Em diversas obras, as imagens
vão muito além da idéia de mera ilustração. A maioria das imagens utilizadas
pelos produtores dos livros não são aleatórias ou ‘somente’ recurso comercial.
Em algumas obras as imagens se constituem em soluções didáticas fundamentais.
Elas conduzem a narrativa e a sua interpretação. Por vezes, produzem um sentido
antes da leitura do texto, dando significado aos conteúdos históricos.
É o caso, por exemplo, de obras
(da década de 1970 e, especialmente dos anos 1980) em que as charges ocupam
papel central como elemento de comunicação visual. Nelas fica ainda mais
visível a força da imagem na construção de um sentido para os conhecimentos que
estão sendo trabalhados. Com recurso ao humor e à ironia, as charges são
utilizadas para problematizar e potencializar os conteúdos abordados, na
maioria das vezes com intenção iconoclasta, para justamente colocar em xeque as
representações arraigadas no imaginário brasileiro.
Nos livros atuais, referentes
ao PNLD 2011, ganham destaque representações positivas sobre os povos africanos
e os cidadãos afro-brasileiros. Imagens do continente africano, com grandes
cidades, produção cultural e intelectual e pessoas em situações positivas de
trabalho e lazer buscam impactar sobre a auto-estima e o orgulho de nós
brasileiros por nossa ascendência africana. É interessante pensar que
precisamos de uma lei para que isto acontecesse!
Ressalte-se, ainda, neste caso,
que esta é uma tendência que ainda não atinge todas as obras, mas aquelas que o
fazem, não deixam de manter certa criticidade apresentando também os problemas
estruturais que envolvem o continente africano e a situação dos afrodescentes
no Brasil no passado e no presente.
Unesp Ciência. Como avalia a obra do
jornalista Leandro Narloch, autor do Guia Politicamente Incorreto da
História do Brasil? O senhor diz que ela faz pensar sobre “os usos sociais do
discurso histórico e, mais especialmente, sobre as relações entre a história
escolar e a história acadêmica”. Por favor, poderia explicar melhor esse
conceito? A obra de Narloch localiza-se no grupo da história acadêmica? Há
diferenças profundas entre esses dois grupos? Por que?
Puxa, esta questão daria um
outro livro com mais 400 páginas! Utilizamos em nosso trabalho algumas
considerações de Narloch para ilustrar as apropriações do discurso histórico e
também leituras que são feitas sobre os livros didáticos de História. No caso,
os discursos de Narloch têm por inspiração um conjunto de reações de parte da
tradição conservadora norte-americana à afirmação das minorias através de uma
série de obras que têm por título The Politically Incorrect Guide.
Embora prolixo, o eixo central
do texto de Narloch assenta-se sobre o discurso engajado dos livros didáticos
e, especialmente, sobre questões relativas à escravidão e à situação de
africanos e indígenas na América Portuguesa.
Os historiadores brasileiros
têm empreendido análises mais complexas sobre a América Portuguesa e as
relações sociais no período de colonização, procurando superar dicotomias
exacerbadas, sobredeterminações estruturais e ressaltando espaços de negociação
para os diversos sujeitos históricos. Contudo, desconheço historiadores atuais
que neguem a violência física e simbólica como um componente intrínseco destas
relações sociais travadas durante a colonização portuguesa da América.
O que Narloch faz é pinçar
algumas conclusões destes historiadores para utilizá-las em sua argumentação.
Aproveita-se das fragilidades da história oficial e, especialmente, de uma
história “engajada” (com relação à participação popular e às desigualdades
sociais) para instaurar um discurso relativista, utilizando, em seus textos,
excertos de análises acadêmicas, ou, nas suas palavras, “científicas”.
Com relação à outra parte da
sua questão, a relação entre o saber acadêmico e o saber escolar é bastante
complexa. Para não nos estendermos, poderíamos salientar que há uma diferença
de natureza e não apenas qualitativa entre as duas formas de conhecimento
produzidas. Fundamentalmente, o conhecimento escolar tem em vista a produção da
aprendizagem que deve se concretizar em um locus específico, a
escola, e, portanto, deve pressupor, em sua organização, as relações de
interação e progressão que são inerentes à escolarização. Portanto, tendo
finalidades e objetivos distintos da produção acadêmica, a história escolar
precisa atender a demandas diversas e selecionar conteúdos possíveis de serem
trabalhados conforme o seu público, os recursos disponíveis e o seu
funcionamento institucional. Competências cognitivas, morais e comportamentais
estão no horizonte do objetivo de formar novas gerações e o texto
escolar deve ir além da transmissão/comunicação de conclusões de pesquisa, para
conseguir promover a compreensão, a alteração de esquemas mentais, o
questionamento de pré-concepções, e instaurar novos habitus.
Contudo, segundo Jörn Rusen, há propósitos que os dois lugares institucionais
(escola de ensino básico e pesquisa acadêmica) comungam: o desejo de apontar e
superar as fragilidades da memória, do senso comum e suprir a carência de
orientação no mundo.
Daí se entende a importância de
colocar em discussão e enfrentar discursos não acadêmicos com os de Leandro
Narloch. Há solidariedade entre a interpretação do passado, o presente e o
projeto de futuro e o que está em jogo por trás das disputas pela identidade e
pela escolarização pública é demasiadamente importante para ser relegado à
indiferença.
Unesp Ciência. O quanto autores como Gilberto Freyre,
Sergio Buarque de Holanda e Darcy Ribeiro, com suas obras que apresentam
análises da identidade do povo brasileiro, influenciaram a produção dos livros
de História do Brasil usados nas escolas?
Não quantificamos em nossa
produção a presença de interpretações oriundas deste ou daquele autor. Mas,
podemos comentar alguns traços mais gerais.
Dos autores que você
referencia, o que é mais apropriado pelas produções didáticas é
Gilberto Freyre. Na verdade podemos falar de uma outra tríade, Gilberto Freyre,
Caio Prado Júnior e Florestan Fernandes.
Gilberto Freyre é quase
onipresente. A polissemia do seu texto o faz apropriado por obras com
os mais diversos posicionamentos políticos.
Apesar de não abordar
diretamente questões de identidade, Caio Prado Júnior é referência central para
a idéia de um sentido da colonização apropriada pelos livros
didáticos e esta idéia tem impacto sobre o discurso a respeito de quem somos
nós, os brasileiros.
Já Florestan Fernandes é
referência importante, especialmente nos dois primeiros períodos analisados, na
questão da resistência indígena e no combate à idéia de democracia racial.
Unesp Ciência. Seu livro mostra que pesquisas
de opinião nos anos 1990 revelaram que muitos de nós nos víamos como um povo
“ordeiro, pacífico, conformado, acomodado”, vivendo numa espécie de Éden, um
país democrático e sem discriminações. Os recentes movimentos, passeatas e
reivindicações que invadiram as ruas brasileiras mostram que mudamos de ideia a
respeito do país e de nós mesmos?
Nem sempre uma análise no nível
das representações pode coincidir com as práticas sociais efetivas. Neste
sentido, ao contrário do que dizem as representações mais disseminadas, uma
parte significativa do povo brasileiro manifestou-se e lutou por seus direitos
em diversos momentos de sua história. É possível dizer que a resistência às comemorações
dos 500 anos e as conquistas recentes dos movimentos negros e os embates que
envolvem as populações indígenas são indícios de que o discurso das
desigualdades harmônicas e da pacificidade não teria sustentação racional na
atualidade. Mas as representações e a realidade estão envolvidas em batalhas e
há sempre um outro lado que deseja que tudo continue como “sempre foi”.
Unesp Ciência. Grande parte dos jovens que vão às ruas hoje reivindicar, entre outras coisas, a melhoria dos serviços públicos, iniciaram a vida escolar durante os anos 1980, “um momento de efervescência política no país” e de “uma aproximação com ideários provindos de movimentos populares”, segundo a tese. O quanto esses jovens que hoje saem às ruas teriam sido influenciados pelo conteúdo dos livros didáticos e pelo ensino de História em sua vida escolar?
A pergunta é bem encaminhada
quando conjuga o conteúdo dos livros didáticos e o ensino de História. Mais do
que para serem lidos, os livros didáticos são objetos produzidos para serem
“usados”. É o uso escolar feito pelos professores de História que lhes confere
sentido. Além disso, é preciso considerar que a escola não é o único lugar onde
os estudantes formam sua “consciência histórica”. Há discursos históricos em
circulação no ambiente familiar, na grande mídia, nas congregações religiosas e
nas redes sociais. O ensino escolar de História é um ambiente importante onde
toda esta gama de referências pode ser posta em discussão, mas se necessitaria
de outra forma de pesquisa para traçar uma relação mais direta entre o que se
discute nas escolas e o ativismo social. Eu e, acredito, a grande maioria dos
professores de História lutamos para que os conteúdos discutidos nas aulas
tenham significação para a vida dos estudantes e que as reflexões daí
decorrentes sirvam, também, para orientar sua vida prática.
Unesp Ciência. O senhor afirma que os livros
didáticos de História aprovados pelo PNLD em 2011 estão mais próximos
da História produzida no ambiente acadêmico e que esses livros “procuram
apresentar os dois lados da questão”. Poderíamos dizer, então, que
finalmente os estudantes de hoje estão recebendo um ensino de História que
apresenta uma imagem mais realista e equilibrada do Brasil e dos brasileiros do
que aquele que foi oferecido às gerações anteriores?
Falando como professor que
trabalha com a formação de professores, posso avaliar uma melhoria da qualidade
dos livros didáticos de História com o desenvolvimento do PNLD. Eliminaram-se
erros crassos e algumas obras trazem propostas pedagógicas bastante
interessantes que, se implementadas em sala de aula, trariam acréscimos na
aprendizagem histórica dos estudantes.
Mas a pesquisa que empreendemos
não chega a esta análise de valor. Como afirmamos em nossas conclusões, constatamos
que as obras do PNLD 2011 buscam um distanciamento em relação à produção
anterior (dos finais dos anos 1980) estabelecendo como o interlocutor principal
da produção didática escolar uma história acadêmica renovada. Procura-se,
assim, evitar maniqueísmos, julgamentos de valor sobre as experiências do
passado e os estereótipos de personagens históricos, produzindo uma história
menos iconoclasta do que a que foi proposta anteriormente. Produz-se um
distanciamento em relação ao passado, marcado também pelo menor uso do tom
emocional e mobilizador na linguagem. Com a diminuição do julgamento
ético-moral sobre o passado, a busca do convencimento seja pela argumentação
persuasiva, pela comoção, compaixão ou pela ironia também retrocede.
Contudo, nesta multiperspectividade,
tentando apresentar “os dois lados da moeda” através de textos de historiadores
ou documentos históricos, a imparcialidade - em que o posicionamento de valor e
a atribuição de sentido seriam transferidos ao estudante ou ao professor em
sala de aula - como não poderia deixar de ser, é apenas aparente. O fenômeno da apropriação por
parte de autores e editores continua acontecendo. Os documentos escolhidos são
fruto (também não poderiam deixar de ser) de uma interpelação à história
acadêmica, onde as questões sociais prementes, exigências legais e a leitura a
respeito do público consumidor limitam e impulsionam o projeto formador construído
por autores e editores.
Talvez faça parte da estrutura
básica da disciplina de História a tentativa de equilíbrio entre o rigor da
ciência (no sentido do uso de informações “verdadeiras”) e a formação de
valores. Percebe-se, até pelo fortalecimento da História acadêmica com a
multiplicação dos cursos de pós-graduação e edição de livros no Brasil, que nas
obras didáticas do PNLD 2011, mais do que em outros períodos, as finalidades,
cívico-moral e acadêmica (de transmissão/atualização dos conhecimentos produzidos
pela academia), atribuídas ao ensino de História, estão sob tensão.
Isso tudo reforça nossa
perspectiva de que o conteúdo dos livros didáticos, com suas dúvidas,
reticências e hibridismos, revela, em parte, as dificuldades, consensos,
digressões e divergências da própria sociedade brasileira em lidar com o seu
passado, seu presente e seu projeto de futuro.
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